• Escadaria da entrada do Palácio Burnay [1958], na Rua da Junqueira, Lisboa. Autor desconhecido. Também conhecido por Palácio dos Patriarcas, o edifício do início do século XVIII foi comprado em 1940 pelo Ministério das Colónias. Em 1962 será ocupado pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCSPU), já depois de acolher outras entidades do mesmo ministério, designadamente a Junta de Investigações do Ultramar (JIU). Com o ISCSPU transitará também o Centro de Estudos Políticos e Sociais (1956), criado no âmbito da JIU para funcionar no então designado Instituto Superior de Estudos Ultramarinos, no Palacete Anjos, ao Príncipe Real. ULisboa/Col. De Fotografia Instituto de Investigação Científica Tropical.

  • Sala do Plenário da Junta de Investigações do Ultramar. [1958] Autor desconhecido.  ULisboa/Col. De Fotografia Instituto de Investigação Científica Tropical.

Palácio Burnay – ISCSP(U)

Artigo por
Frederico Ágoas

Ideologia e ciência no ensino colonial

Ao contrário do que por vezes ocorre com as peripécias políticas, as mudanças de ideias não ficam associadas a monumentos ou marcos na cidade – não imediatamente, pelo menos, ou apenas por associação a indivíduos. Em parte, certamente, porque a marcha dos saberes não se manifesta por cortes dramáticos e repentinos, ainda que a história do conhecimento, como disciplina, se tenda a centrar, hoje, em momentos de turbulência – os chamados cortes epistemológicos ou saltos paradigmáticos. E porque mesmo nesses casos é difícil apontar-lhes uma ocasião ou um intervalo de tempo específicos, ao invés de guerras, revoluções e conquistas. Não é o que sucede com a reforma do pensamento colonial português e com a transferência de parte importante do seu escol para o Palácio Burnay, na rua da Junqueira, em Lisboa, a pretexto da criação do Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (ISCSPU), em Novembro de 1962.
Tais coordenadas são duplamente circunstanciais, reconheça-se. À data, a transformação da antiga escola colonial numa faculdade de ciências sociais, como hoje se reclamam os seus herdeiros, constitui o ponto de chegada – mais do que o início – de um processo relativamente longo, que, de resto, não se restringe a esta componente académica. E o espaço escolhido para acolher os formandos do corpo administrativo do império colonial português, hoje desocupado, não carrega consigo qualquer simbologia imperial particular, para além da implantação ribeirinha, junto de outros edifícios do Ministério do Ultramar, e de acolher, à época, o Conselho Ultramarino – o que talvez não seja dizer pouco. Datado do início do século XVIII, o palácio em questão passou de mão em mão entre proprietários civis e eclesiásticos antes de ser comprado à família Burnay pelo então designado Ministério das Colónias, em 1940, que instalará aí o Conselho Técnico de Fomento Colonial, a Junta das Missões Geográficas e a Inspeção Superior de Administração Colonial, para além do então designado Conselho do Império Colonial, antes da concentração progressiva dos seus serviços no Restelo, ao longo da década de 1960.
Com efeito, a articulação física do ensino colonial e do mais alto foro consultivo e judicial do império português (e de parte da investigação científica, como veremos) serve aqui para lembrar a natureza eminentemente política do processo em apreço – nem podia ser de outra forma, atendendo ao âmbito imperial da instituição e ao autoritarismo feroz do Estado Novo. E é mesmo possível dizer que, mais do que no domínio dos saberes, estamos no território da ideologia, que é o nome que se dá às ideias quando são movidas por interesses – políticos, neste caso; coloniais, para sermos precisos. De acordo com esta perspectiva, a criação do ISCSPU e, por maioria de razão, a transformação da Escola Superior Colonial, em 1954, em Instituto de Superior de Estudos Ultramarinos (ISEU), na sequência da revisão constitucional do início da década de 1950 que consagrou a designação de “províncias ultramarinas”, constituíram antes de mais parte de um esforço integrado de cosmética política e de propaganda nacional e internacional da parte da ditadura, destinado à defesa do império. Isto face ao contexto geopolítico do segundo pós-guerra, à vaga de independências entre antigas colónias, à pressão estrangeira, ao nacionalismo africano e, enfim, à ameaça de guerra nos territórios coloniais, entretanto consumada, a partir de 1961. O mesmo se aplicaria à reforma da oferta curricular da instituição, que se verificou, entretanto.
Sem prejuízo do exposto, ocorre de facto uma transformação dos conhecimentos ministrados aos quadros coloniais, onde o estudo das leis e dos preceitos da antropologia física (particularmente ao nível da pesquisa) vai perdendo espaço a favor das ciências sociais. E aos motivos aduzidos para tal, devemos acrescentar outros relacionados com a modificação do quadro administrativo das colónias, mas não da “missão civilizadora” que lhe dá razão de ser; com a insatisfação dos alunos da escola face aos métodos de governo administrados, mas não com os motivos imperialistas que os justificam; e à absorção junto de outros impérios coloniais em África – com atraso, diga-se – de novos saberes colonizadores, sem pôr em causa, no caso português, o aparato repressivo que os precede. Em contrapartida, os processos assim desencadeados prolongaram-se bem para lá dos seus motivos imediatos, quer porque muitos dos lugares comuns que entretanto se impuseram a respeito da índole dos portugueses e da sua relação com terceiros remontam a esta altura ou têm no palácio Burnay – embora não apenas no ISCSPU – um dos lugares privilegiados da sua enunciação; quer ainda porque o espaço se tornaria um dos núcleos primitivos das ciências sociais portuguesas à época da sua emergência – desenlace bem distante do horizonte inicial da escola, por ocasião da primeira institucionalização da sociologia entre os países centrais.
Criada em 1906, a Escola Colonial começaria por funcionar nas instalações da Sociedade de Geografia de Lisboa, instituição decisiva na formulação de saberes e políticas coloniais. À data sua instituição não conta com qualquer ciência social ou humana no seu currículo, apesar de um dos seus mais destacados professores, a prazo, Lopo Vaz de Sampaio e Melo, defender desde logo, no seu livro Questões Coloniais: Política Indígena (1910), a integração das ciências antropológicas e das modernas teorias sociológicas na ciência da colonização. A reforma curricular de 1919 consagra parcialmente esta orientação, com a introdução das cadeiras de Etnologia e Etnografia Colonial e de Política Indígena, e incrementa a carga lectiva dedicada aos idiomas africanos e ao Direito. A mesma orientação seria confirmada pela reforma de 1926, que eleva a instituição a Escola Superior Colonial, antes de transitar para o Palacete Anjos, no Príncipe Real (1933). A reforma de 1946 institui dois cursos distintos, Administração Colonial e de Altos Estudos Coloniais, e alarga timidamente a influência das ciências humanas. No primeiro curso continuaria a figurar uma cadeira de Etnografia e no segundo passaria figurar a nova disciplina de Instituições Nativas.
A este respeito, a reforma curricular de 1961, antes ainda do ISEU ser transferido para o Palácio Burnay, representa um momento decisivo. Do curso de Administração Ultramarina constam agora as cadeiras de Introdução à Sociologia, Política Social Ultramarina, Metodologia das Ciências Sociais e Migrações e Povoamento – para além de Etnografia do Ultramar Português. E do Curso Complementar de Estudos Ultramarinos constam também as cadeiras de Antropologia Cultural, Instituições Regionais, História das Teorias Políticas e Sociais, História da Informação (Sociologia da Informação, entretanto) e ainda um Seminário de Investigação Sociológica. A este movimento geral corresponde a renovação parcial e progressiva do seu corpo docente, por via da integração de figuras reputadas como o antropólogo Jorge Dias, o historiador Vitorino Magalhães Godinho (de passagem, apenas) e o sociólogo norte-americano Donald Pierson, entre outros, ou a oferta pontual de conteúdos na mesma área por cientistas sociais estrangeiros.
O advento, aparentemente súbito, das ciências sociais no ensino colonial português tem sido associado à incorporação política das ideias do sociólogo brasileiro Gilberto Freyre a respeito do carácter “excepcional” do colonialismo lusitano e da sua “especial benevolência”, face a outros impérios – o chamado luso-tropicalismo, entretanto transformado em ideologia imperial. Mas os conteúdos aí ministrados não passam exclusivamente pela vulgata luso-tropical. Sem abdicar de um capítulo final consignado a esse desígnio, o curso de sociologia oferecido por uma socióloga belga na Escola Superior Colonial, no ano lectivo de 1953-54, apresenta noções perfeitamente actuais, à época – mas pouco comuns no panorama português. De acordo com o depoimento de um dos envolvidos, a iniciativa resulta da pressão dos alunos, que por então reclamam a renovação dos saberes coloniais e dos métodos de governo associados, face à falência do paradigma vigente, de natureza jurídica e, acessoriamente, científico-natural (antropométrico). Antes disso, por ocasião da reforma curricular de 1946, o curso de Altos Estudos Coloniais passa a prever, a par da introdução de novas regras de acesso às posições superiores da administração colonial, a entrega de teses originais que tematizam, já, problemáticas de índole social.
Mais relevante é a participação portuguesa em reuniões inter-imperiais de cooperação técnica e científica sobre o continente africano. Antes de mais, as sucessivas edições da Conferência Internacional dos Africanistas Ocidentais, uma iniciativa do Institut Français d’Afrique Noire, em 1945, que reúne em Dakar especialistas de várias áreas do saber, oriundos de territórios franceses, britânicos, espanhóis e portugueses na região – da Guiné, no caso português. A segunda edição, realizada em Bissau em 1947, seria fundamental para a afirmação e desenvolvimento científico do Centro de Estudos da Guiné Portuguesa, criado em 1945 pelo governador Sarmento Rodrigues, e onde à época despontam alguns estudos sistemáticos acerca das etnias do território, conduzidos por quadros coloniais e inspirados, entretanto, pelas correntes funcionalistas da antropologia social britânica e pelos mais recentes trabalhos da sociologia colonial francesa. O facto é significativo em si mesmo, considerando o estado da arte na metrópole, mas pode aqui ser tomado como antecedente de um conjunto de reformas empreendidas por Sarmento Rodrigues, em Lisboa, na qualidade de ministro do Ultramar, como a própria elevação da escola colonial a ISEU ou a criação de um Centro de Estudos de Etnografia do Ultramar, em articulação com aquele. Será ele, também, o responsável político pela incorporação ideológica do luso-tropicalismo.
A um nível institucional mais elevado, destaque-se a colaboração científico-social empreendida no quadro da Comissão de Cooperação Técnica na África ao Sul do Saara (CCTA). Trata-se, neste caso, de um organismo criado em 1950 pelos governos de França, Reino Unido, Portugal, Bélgica, União da África do Sul e Rodésia do Sul para fazer face às investidas em África das Nações Unidas e das suas agências especializadas, mas também como estratégia recíproca para afirmar os desígnios desenvolvimentistas com que britânicos e franceses, em particular, procuram combater o anticolonialismo emergente. Na verdade, a incorporação progressiva das ciências sociais no ensino colonial português sucede-se à Conferência Inter-Africana de Ciências Sociais organizada pela CCTA em 1955, em Bukavu, onde estariam presentes, em representação do Estado português (entre outros dignitários coloniais), o director em funções do ISEU e o seu sucessor, António Mendes Correia e Adriano Moreira, respectivamente. Aí, a criação de cadeiras de Sociologia (1955) e de Antropologia Cultural (1956) surge na sequência das recomendações emanadas pelo conjunto das delegações presentes em Bukavu, antes de mais como símbolo do compromisso português com estas matérias. E o mesmo sucede com a criação do Centro de Estudos Políticos e Sociais (1956), da Junta de Investigações do Ultramar, para funcionar junto do ISEU.
Entre outras atribuições, o novo centro seria responsável pelo lançamento das primeiras missões científico-sociais nas colónias portuguesas, entre as quais a Missão de Estudos das Minorias Étnicas do Ultramar Português, dirigida por Jorge Dias; e ainda por promover a formação avançada em ciências sociais, começando por enviar bolseiros para universidades estrangeiras – recomendações de Bukavu, igualmente. Com a integração na Universidade Técnica em 1961, um pouco antes, portanto, da passagem a ISCSPU, o instituto passaria a oferecer licenciaturas e doutoramentos (embora não em sociologia), ficando sob a dupla tutela do Ministério da Educação Nacional e do Ministério do Ultramar. O facto pode ser visto como momento inaugural do ímpeto, da parte dos seus responsáveis, de autonomização institucional da escola, assente na tentativa de distanciamento face à sua matriz burocrática e na reivindicação da primazia no desenvolvimento das ciências sociais em Portugal. Semelhante estratégia só ganharia expressão plena no final da década de 1960 e obteria, enfim, reconhecimento parcial em 1972, com a passagem do ISCSPU para a dependência exclusiva do Ministério da Educação e com o estabelecimento legal de uma licenciatura em ciências sociais, depois de ter sido criada, já, uma licenciatura em ciências antropológicas. Após a revolução a instituição perderia, enfim, o U do nome.
O processo está devidamente estudado, a par do conflito simbólico que oporia o ISCSPU a outros protagonistas na afirmação das ciências sociais no país, durante a ditadura. Por estudar, todavia, permanecem os efeitos que esta deriva científico-social da formação dos quadros coloniais efectivamente teve (ou não) na governação do império e, entretanto, na própria condução da guerra colonial. Por estudar está também o quanto a putativa benevolência dos portugueses ou o seu suposto ecumenismo racial ficam a dever a uma sociologia colonial que, de certa forma, ainda hoje subiste e em que ideologia e ciência se alimentaram mutuamente. A este último título, e independentemente dos resultados destas pesquisas, é seguro dizer desde já que o Palácio Burnay permanece hoje, vazio, como marco singelo da relação perene entre conhecimento e poder, e como padrão inconspícuo de circunstâncias mais ou menos omissas, mas matriciais, da identidade portuguesa.

Galeria

  • © Pedro Medeiros, Palácio Burnay, 2021

  • © Pedro Medeiros, ISCSP (U), 2021

  • © Pedro Medeiros, ISCSP (U), 2021

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