Vale do Ave

Artigo por
Nuno Domingos

Vale do Ave

O estabelecimento de um comércio intercontinental de algodão no quadro imperial português durante o século XX não pode ser apenas avaliado pelo reconhecimento do efeito económico da circulação de matérias-primas, produtos confecionados e capitais. Este comércio manifestou-se por outras formas. Na rede hidrográfica do Vale do Ave dinamizou uma especialização industrial algodoeira que beneficiava de uma mão de obra abundante e barata, gerida por práticas paternalistas legitimadas e reforçadas pelo Estado Novo de Salazar. Na metrópole, estre tráfico reconfigurou a gestão das desigualdades, permitindo o enriquecimento de uma elite local. Esta prosperidade metropolitana foi alimentada por um modelo de cultivo obrigatório do algodão em Angola e especialmente em Moçambique. Explorado por empresas de capitais maioritariamente nacionais e enquadrado pela Junta do Algodão Colonial a partir de final dos anos de 1930, este plano de cultivo baseou-se na cooptação forçada de centenas de milhares de africanos, arrastados à força das suas economias e vivências tradicionais para os campos de cultivo. A recuperação historiográfica deste comércio é hoje fundamental para dinamizar um necessário debate público sobre o passado imperial, mas também acerca de como o tempo colonial persiste hoje na sociedade portuguesa, do seu património edificado à estrutura das relações de poder onde se alicerçam hierarquias e desigualdades.

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